quarta-feira, 24 de novembro de 2010

das utopias do amor

De um lado, um homem que procura estar a salvo dos tormentos da memória, que vê o amor como status social - fez do casamento um "ofício", no qual sua companheira esteve voltada para os seus compromissos e necessidades até a hora de sua morte. De outro, aquele que fez do amor e seus tormentos o seu alimento, que seguiu idealizando a mulher amada mesmo diante da velhice - o amor que resiste ao tempo, "um estado de graça que não é meio para nada, e sim origem e fim em si mesmo", o amor na sua essência. Dois extremos. E, entre os dois, uma mulher que supostamente sempre teve a certeza de ter feito a escolha certa mesmo diante de uma traição e das desavenças do casamento, mas que, na verdade, sempre esteve dividida entre a razão de um e a sensibilidade de outro. Nessa história de Gabriel García Marquez há muito de utopia, mas muito mais de lirismo e poesia, é definitivamente uma história que faz sonhar.


(imagem do filme de 2007, baseado no romance.)

Alguns trechos:


"Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado."

"Florentino Ariza, por outro lado, não deixara de pensar nela um único instante desde que Fermina Daza o rechaçou sem apelação depois de uns amores longos e contrariados, e haviam transcorrido a partir de então cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias. Não tivera que manter a conta do esquecimento fazendo uma risca diária nas paredes de um calabouço, porque não se havia passado um dia sem que acontecesse alguma coisa que o fizesse lembrar-se dela.
(...) Ele a vira pela primeira vez uma tarde em que Lotário Thugut o encarregou de levar um telegrama a alguém sem domicílio conhecido que se chamava Lorenzo Daza. (...) Ao passar diante do quarto de costura viu pela janela uma mulher mais velha e uma menina, sentadas em duas cadeiras muito juntas, as duas acompanhando a leitura no mesmo livro que a mulher mantinha aberto no colo. Pareceu-lhe uma visão estranha: a filha ensinando a mãe a ler. A dedução era incorreta só em parte, porque a mulher era tia e não mãe da menina, embora a tivesse criado como se mãe fosse. A aula não se interrompeu, mas a menina levantou a vista para ver quem passava pela janela, e esse olhar casual foi a origem de um cataclismo de amor que meio século depois não tinha terminado ainda. (...) Antes que Florentino Ariza lhe contasse que a tinha visto, sua mãe já o descobrira, porque ele perdeu a fala e o apetite e passava as noites em claro rolando na cama. Mas quando começou a esperar a resposta à sua primeira carta, sua ansiedade se complicou com caganeiras e vômitos verdes, perdeu o sentido da orientação e passou a sofrer desmaios
repentinos, e a mãe
se aterrorizou porque seu estado não se parecia com as desordens do amor e sim com os estragos do cólera. O padrinho de Florentino Ariza, antigo homeopata que tinha sido confidente de Trânsito Ariza desde seus tempos de amante oculta, se alarmou também à primeira vista com o estado do enfermo, porque tinha o pulso tênue, a respiração rascante e os suores pálidos dos moribundos. Mas o exame revelou que não tinha febre, nem dor em nenhuma parte, e a única coisa que sentia era uma necessidade urgente de morrer. Bastou ao médico um interrogatório insidioso, primeiro a ele e depois à mãe, para comprovar uma vez mais que os sintomas do amor são os mesmos do cólera. Receitou infusões de flores de tília para entreter os nervos e sugeriu uma mudança de ares para buscar consolo na distância, mas aquilo por que anelava Florentino Ariza era todo o contrário: gozar seu martírio. Trânsito Ariza era uma quadradona livre com um instinto da felicidade frustrado pela pobreza, e se deleitava com as penas do filho como se fossem suas. Fazia com que bebesse as poções quando o sentia delirar e o enroupava em mantas de lã para enganar os calafrios, mas ao mesmo tempo lhe dava ânimo para confortá-lo em sua prostração.
- Aproveite agora que você é jovem para sofrer o mais que puder - lhe dizia - que estas coisas não duram toda a vida."


"Tinha que ensiná-la a pensar no amor como um estado de graça que não era meio para nada, e sim origem e fim em si mesmo."


"O comandante olhou Fermina Daza e viu em suas pestanas os primeiros lampejos de um orvalho de inverno. Depois olhou Florentino Ariza, seu domínio invencível, seu amor impávido, e se assustou com a suspeita tardia de que é a vida, mais que a morte, a que não tem limites."


El amor en los tiempos del cólera, de Gabriel García Márquez.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

a favor do vento

E pouco a pouco vou deixando de lado todo o peso que inutilmente carreguei ao tentar guiar a vida sempre contra a maré. Agora, leve, levo quase tudo de mim para outra direção. E redireciono o rumo não por fraqueza, pois força pra remar ainda tenho - até hoje não deixei o barco afundar.
Cansei é de ser tempestade, de fazer vendaval. Desgaste vão. No meu desassossego, muito pouco encontrei e quase nada restou: restava eu sobrecarregada apenas do silêncio que grita, do vazio que dilacera - peso oco. Da turbulência, por hoje, me despeço. Encontro consistência na leveza. Só quero ir sendo, andar a favor do vento: aceito, agora, a brisa leve de braços abertos.


"Muito tempo eu andei contra o vento
Mas agora é hora e mudar
Pois o contrário de nada é nada
E assim não se sai do lugar

-

Quando a mente está em pleno silêncio
Não está nessa, e muito menos naquela
É aí que você pode então escolher
Quem conhece bem o branco e o preto
Já viveu e já morreu no caminho
Está pronto para as cores do sol receber"

O contrário de nada é nada, Os Mutantes.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

esconderijo noturno

Bem que o sol, só por hoje, podia não nascer.
E assim permaneceria embalada por esse silêncio inviolável horas a fio,
Preenchida apenas pela solidão da madrugada,
Sentindo da janela a lua que pálida acalenta, ainda que encoberta.
Sinto, lá fora, apenas os tortos passos dos loucos, bêbados e poetas que andam pela rua a vagar, livres, em paz.
Só por hoje, quero eu também caminhar calmamente nas linhas tortas desses noturnos pensamentos, livremente sossegar.
Ficar apenas assim solta, assim só nesse esconderijo que teci, nada mais.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

agosto através da janela

Sentada em frente a janela, Clara contemplava a chuva que caía em mais um dia cinza de Agosto, que, aliás, geralmente é um mês bem cinzento. Mas, dessa vez, parecia o ser ainda mais - chovia lá fora e dentro dela.
Foi quando Clara flagrou-se pensando em todas as ausências que, naquele Agosto, fizeram-se ainda mais presentes. "Ausências presentes", Clara pensou, "que ironia!". Ausências de que ou de quem, só ela sabe e não importa a ninguém mais. O fato é que ela as sentia e, naquele momento, teve como companhia apenas alguns vultos e remotas lembranças de um passado que ela mal conseguia recordar. Antigamente, Agosto costumava ter mais cor - e essa certeza sim, está nítida dentro dela. Hoje, envolta apenas pelo barulho da chuva incessante, Clara quis desfazer-se de todos aqueles pensamentos tão turvos que, bruscamente, surgiam em sua mente sem ao menos pedir licença, afastando sabe-se lá para onde toda a claridade, toda a cor dos dias de Clara.
Ela, que já fora assim, tão furta-cor. Transparente, também. Digo melhor: toda a cor de Clara transparecia, reluzia em seu rosto. E brilhava, como brilhava aquele rosto tão claro. E apesar da total ausência de brilho daquele momento, é bom lembrar que ela ainda brilha muito vezenquando, em dias claros de céu azul. Mesmo assim, Clara não sabe se realmente sente falta de toda aquela explosão de cores radiantes, mas está certa de que não precisa, de que não quer mais cinzas tão melancólicos.
Então, quando caiu em si, levantou para ver as horas e Agosto já tinha se desfeito pela janela, despedaçando-se pelo chão. Voltou a enxergar sutilmente colorido, e viu centenas de nuances dentro dela. Setembro já havia começado a florir sem que ela percebesse...

quarta-feira, 22 de abril de 2009

insaciável fome de viver

Além de apenas existir, tenho sede de viver e fome de viver a vida longe do óbvio, do comum, do vulgar, burguês e banal - uma vida de limitações faria com que eu perdesse o apetite facilmente.
Tenho sede para desvendar os meus limites, e fome para conseguir ultrapassá-los. Tenho sede de alegria e fome de tristeza - longe de mim a melancolia suicida dos ultra-românticos, quero mesmo é a inconstância, oscilar entre risos e choros (de preferência calados), viver apenas de momentos intensos e senti-los com toda a intensidade que minha fome puder suportar, pois o meu paladar é aguçado, não consegue degustar o morno, o insosso.
Minha fome pela vida grita, lateja, e sacia-se apenas com música, arte, poesia. Minha fome busca sempre mais conhecimento, precisa de diversão, quer cometer loucuras e ter bons momentos com os amigos. Mas apesar dessa fome desassossegada, também sinto fome de calmaria, de viver uma vida tranquila, seja em um outono nublado, ouvindo a chuva cair, entre filmes, livros e cobertores, seja em um final de verão na praia, assistindo ao pôr-do-sol ou ao nascer do dia, areia nos pés, brisa no rosto e toda a imensidão do mar à minha disposição.
Fome por desejo, necessidade ou vontade? Tenho fome de pão e sede de água, também. Mas minha fome é exigente, não aceita migalhas. Eu não quero comida, eu quero saciar minha fome apenas com a vida, sentir fome apenas de viver.



Faltou uns quantos detalhes no texto, mas o tempo está curto e, ultimamente, ando tão sem apetite...
- a angústia que traz a monotonia estreita a minha fome, mas ela segue aqui, é bom lembrar, mais viva do que nunca.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

a sede que aqui grita

O gosto do vazio é o que aumenta a minha sede até a boca restar seca, guardando todas as palavras que não posso - e nunca consegui - verbalizar. Incompreendidas, retraídas, palavras escondidas de sentimentos que também não entendo, apenas guardo. E quem disse que precisa fazer algum sentido?
Já não sei decifrar o que se esconde no mais profundo de mim, há muito tempo perdi a habilidade de ser racional com o que parece impossível de ser racionalizado, embora eu quisesse, e o tempo todo eu quis, ter controle sobre as minhas emoções, engavetá-las até criarem pó, mofando esquecidas em qualquer lugar onde não possam me perturbar. Pois aqui dentro já não há mais espaço algum para elas e o estrago já está feito: essa vontade de sentir não termina mais, os sentimentos se alastram tomando conta de cada pedaço do meu corpo: o coração contorcido, a mente ofuscada, a garganta desidratada que grita, com toda a sede do mundo, pedindo por um pouco de água ou qualquer outra coisa que sacie essa vontade sei lá de quê. Vontade de desaprisionar-se, talvez. De desaprisionar-se dos próprios sentimentos e sentir enfim um pouco de paz.
O problema é que, para libertar-me dos meus sentimentos, da minha sede e da minha vontade, primeiro teria que conseguir revelá-los a alguém, e essa técnica ninguém soube me ensinar. Talvez antes seja preciso sentir total segurança para não dar nenhum passo em falso, ganhar uma garantia, um certificado registrado e carimbado de que vou arrancá-los lá de dentro, com esforço desprendê-los e permitir que se revelem sem causar nenhum arrependimento ou dano depois - uma vez revelados, seria impossível ocultá-los novamente. Ou, talvez, eu devo deixar de lado o medo mesquinha, a insegurança infantil e aprender sozinha a libertá-los, sem precisar de garantia ou coisa alguma. Afinal, ninguém está livre de quebrar a cara alguma(s) vez(es) na vida, mas, mesmo assim, todo mundo deve desacorrentar o que se insiste em aprisionar, e só assim deixar de ser escravo de si mesmo - na teoria. Na prática, até agora, só aprendi mesmo é que entre todas as entregas receosas, as esperas, o cansaço, o vazio da ausência que restou, o que resta é sede, apenas.

"...E eu me pergunto se viver não será essa espécie de ciranda de sentimentos que se sucedem e se sucedem e deixam sempre sede no fim."

Deve ser.

sábado, 7 de março de 2009

lost in wonderland

Perdida em um turbilhão de angústias e incertezas do qual tento, mas nem sempre consigo sair, pensar já é difícil, quem dirá escrever. Então, pra começar, acho que esse trecho da Sylvia Plath, angustiante como a autora, fala por si só:

"Vi minha vida se desenrolar diante de mim como uma figueira de um conto que havia lido. Da ponta de cada ramo, um gordo figo roxo acenava e me seduzia com um futuro maravilhoso. Um figo significava um marido e um lar feliz com filhos, outro era uma poetisa famosa, outro uma professora, outro era Esther Greenwood, a surpreendente editora, outro era a Europa, a África e a América do Sul, outro Constantin e Sócrates e Átila, um bando de amantes com nomes esquisitos e profissões originais, outro ainda era uma campeã olímpica, e acima de todos esses figos havia muitos outros que eu não conseguia entender. Vi-me sentada sob essa figueira, morrendo de fome, só porque não conseguia decidir qual figo escolheria. Queria-os todos, e escolher um siginificava perder o resto. Incapaz de me decidir, os figos começavam a murchar e apodrecer, e um a um caiam no chão a meus pés."

O que se faz quando algumas certezas viram dúvidas? E quando a presença das dúvidas faz-se cada vez mais certa? Escolher o caminho, o que ser, ter que ser, às vezes simplesmente perde o sentido. Por que não posso simplesmente... ser? Ir sendo. Mas tenho que ser, tenho que ser, tenho que ser. É como ser empurrado para subir no palco e entrar em cena antes da hora, ou tarde demais, sem estar totalmente preparado, sem saber a fala, o ato, o roteiro exato. Eu quero entrar em cena e sei como atuar, mas não consigo decidir em qual palco entrar? Às vezes penso que precisaria de mais dez vidas para ser e fazer tudo o que eu quero(ia) nessa vida. Às vezes, acho que não sei como chegar lá, quanto tempo se leva pra chegar e tampouco onde fica. E agora?

Alice precisou se perder para, então, se encontrar...

Cheshire Cat: [reappears] There you are! Third chorus...
Alice: Oh, no, no. I was just wondering if you could help me find my way.
Cheshire Cat: Well that depends on where you want to get to.
Alice: Oh, it really doesn't matter, as long as...
Cheshire Cat: Then it really doesn't matter which way you go.

Síndrome de Alice, sim senhor. E enquanto corro atrás do meu coelho branco, preciso ser menos Alice e deixar de viver em Wonderland - ou talvez reinventá-la. Preciso pensar menos, fantasiar menos e, depois de me perder, tentar, enfim, me encontrar.